domingo, 2 de setembro de 2012

Diário extra-classe


Quando fiquei sabendo dessa menina e dessa página no facebook: https://www.facebook.com/DiariodeClasseSC?ref=ts eu me abstive de comentar. Muita gente tava elogiando a iniciativa, dizendo que a garota era corajosa e tal, e eu fiquei meio surpresa por isso... Surpresa, sério. Porque eu me lembrei da minha adolescência, do meu ensino médio, quando eu, como essa garota, fazia o mesmo tipo de crítica sobre a minha escola. Só que naquela época – graças a deus – não tinham redes sociais, eu apenas reclamava para os funcionários envolvidos sobre a falta de infra-estrutura da minha escola que, além de tudo, era particular, e nem argamassa e tinta tinha nas paredes. Lembro que uma das poucas vezes que minha mãe foi numa reunião, ela voltou pra casa orgulhosa de mim – sério – dizendo que a coordenadora tinha elogiado o meu senso crítico. Isso mesmo, ela não achou ruim o fato de eu reclamar da escola, ela achou isso bom. Infelizmente isso não ajudou em nada a mudar a escola, minha irmã estudou lá muitos anos depois e continua a mesma coisa.
De qualquer forma, quando me lembro dessa época, eu não me orgulho de ter sido tão crítica. Na verdade, depois de passado todo esse tempo, eu comecei a me envergonhar de ter criticado tanto sobre a falta de argamassa, porque em que isso, afinal, modificava a minha aprendizagem? Pois é, em NADA. Era uma crítica superficial, sobre a aparência da escola. E só depois de todo esse tempo eu reparei o quanto a escola deixava de investir nisso para investir em... professores! Meus professores eram ótimos. Não me lembro de nenhum que fosse despreparado, que não fosse alguém que me ensinou muito. Sem contar essa coordenadora que foi capaz de elogiar senso crítico – o que, absurda e infelizmente, é raridade nas escolas.
Aí que ontem cheguei em casa e o Eros me recebeu com um abraço dizendo: você ta certa, vamos comprar uma máquina de costura pra você costurar. Eu achei meio bizarro, fiquei pensando: que que deu no Eros? Haha! O que deu é que ele tinha visto o site dessa garota e soube do caso do professor de matemática que foi afastado de sala por não saber “dominar” a turma. Aliás, ele teve até a aula filmada e postada na internet, para todo mundo ver, inclusive futuros empregadores, futuros alunos. Para todos verem ele sendo humilhado.
E essa noite eu tive pesadelos com sala de aula. E quando penso nisso lágrimas me vem aos olhos. Durante mais ou menos 14 anos da minha vida ou mais, como vocês devem saber, eu venho planejando ser professora. Desde muito pequena eu dava aulas imaginárias, eu era a 1ª ou a 2ª da sala, querendo aprender. Durante todo esse tempo eu observei o trabalho dos meus professores procurando referências, estudei com muito esmero os meus 4 anos de faculdade numa boa faculdade, sem nunca reprovar em sequer uma disciplina, passei 2 anos em sala de aula auxiliando professoras diariamente e assistindo e aprendendo também com suas aulas pra chegar aqui, neste exato momento, e ter abandonado todos esses planos, todo esse tempo de estudo pra fazer costuras pra fora. Ser professora foi sempre a única certeza da minha vida. Aquilo que eu sempre sonhei, que eu achava que ia me fazer feliz e ia ser de importância para a sociedade em que vivo, e foi algo que eu realmente me dediquei. E que eu desisti em 6 meses de pesadelo, nos quais eu também fui incapaz de “dominar” uma turma.
Só quem já passou por isso sabe o quanto é devastador. A sensação de falha, de inferioridade, de lixo, que senti foi tão grande que em alguns dias eu ficava esperando ficar muito doente, ou sofrer uma violência na rua, qualquer coisa que me impedisse de ir pra escola e ter de dar aula. Ao menos ninguém filmou isso e pôs na internet, eu espero.
Eu fico pensando o que me fez “falhar” como professora. Talvez tenham sido as inúmeras aulas da faculdade sobre escola da ponte, lendo textos dizendo que a escola deve dar asas e não aprisionar. Eu concordei com tudo isso, eu sou uma pessoa extremamente libertária. Não quer dizer que eu não saiba que existe autoridade no mundo, que eu deixe os alunos “fazerem qualquer coisa”, significa que eu sempre pautei minha conduta num ideal de que eu não devia aprisionar meus alunos, de ser a tal autoridade não autoritária.
Quando eu abandonei essa carreira não foi só porque eu “falhei”. Primeiro, as aspas são justas, eu não acho que falhei. Eu acho que a sociedade falhou em criar pessoas livres. Eu cansei de ter sempre essas lamúrias comigo, lamúrias de todo professor, mas lamúrias justas. Não queria ser aquela pessoa que faz a mesma reclamação de sempre, já basta minha depressão me deixando assim. E também não queria me tornar aquilo que minha psiquiatra apelidou de “guarda de cadeia”. Eu queria ser professora, não guarda de cadeia. Comparar escola com prisão sempre me causou incômodo. Essa acusação de que a escola é um MAL, cerceadora, esse discurso que rola entre os libertários sempre me causou desconforto. Eu não escolhi essa profissão pra ser liberar meu sadismo. Para ser a guarda de cadeia. Eu tinha escolhido isso pra fazer o maior bem possível. Para tornar meus alunos leitores. Para tornar meus alunos tolerantes. Para tornar meus alunos seres livres.
Mas a realidade, a realidade mesmo, é que atualmente professores são guardas de cadeia. Porque os alunos são criminosos. E parem de culpar o sistema carcerário. É um saco ser professor e levar tiro por tudo que é lado. Não basta você ter que estudar pra caralho, lidar com todo tipo de merda, trabalhar 24 horas por dia os 7 dia das semanas, você ainda é obrigada a ouvir que se algo der errado a culpa é toda sua. Você não soube dominar a turma, ou dominou demais, enfim. E não vou vir com o velho discursinho de que “a culpa é da família”. Não é que não seja. Talvez a culpa seja de todos nós.
Primeiro reflitamos sobre nosso conceito de adolescência. Ninguém sabe o que é adolescência com certeza, nem quantos anos ela tem, a adolescência é uma construção social. Essa noção de que adolescentes são “difíceis”, adolescentes são “irresponsáveis”, isso tudo a gente ACEITA como um padrão de conduta e, ao aceitar, promove. Eu não to dizendo que fui uma adolescente perfeita. Aliás, eu fui uma adolescente tão difícil que minha mãe achava que eu estava possuída por espíritos – imaginem! Nem to dizendo que respeitei autoridades doesse a quem doer. Sabem aquela expressão que diz “mais feio que bater em mãe”?, eu sempre fico constrangida quando ouço isso porque eu já bati na minha mãe. Pois é. Mas, em minha defesa, eu estava apanhando dela e do meu padrasto, por causa dos espíritos. Eu estava tentando me defender. E depois me senti muito mal por isso porque eu machuquei o braço do meu padrasto, coitado, eu devia ter apanhado quietinha, como deve ser.
Mas voltando aos adolescentes... Se eles podem ser irresponsáveis, se eles podem desrespeitar pessoas (e não vou colocar “mais velhos”, nem “professores”, eu to dizendo PESSOAS, sejam professores ou colegas), porque isso “faz parte da adolescência”, fica muito fácil descobrir por que o professor é sempre o vilão da história. Ou ele é um ser tão carismático que todo mundo ama – e vocês devem saber que no fundo ninguém consegue o amor de todo mundo, nem a pessoa mais carismática do planeta –, ou ele é ruim porque ou ele é agressivo demais, o que é um absurdo, “são apenas adolescentes”, “eles são imaturos demais para saber se portar”, ou é agressivo de menos e isso também é absurdo demais pelos mesmos motivos citados acima. Professor é igual mãe, esse ser mítico, que sabe dosar carisma, autoridade, é legal, mas não muito legal, não caga, não falta, faz tudo pelas crianças sem esperar nada em troca. Se algo falhar nessa receita a culpa é toda sua, não seja mãe, não seja professor.
Criamos pessoas mimadas. Pior, não mimadas, mas pessoas intolerantes, sociopatas. Antes de falar de merda de escola claustrofóbica, de coitadinho dos alunos sendo aprisionados, de malvado professor autoritário que não educa para questionar, ou o professor sem autoridade que não educa para “o mundo”, vamos tentar culpar os culpados. Se a turma não tem “domínio”, errada é ela que não sabe se comportar. FIM. Simples assim. Se não é nessa idade que essas pessoas aprendem a respeitar uns aos outros, QUANDO IRÁ? Se é só por coerção que fazemos esse respeito acontecer, que tipo de mundo estamos esperando? Repito: educação “para o mundo” é educação para manutenção do status quo? Um mundo em que as pessoas só se comportam enquanto alguém estiver olhando? Um mundo em que o estuprador só não estupra porque a rua está bem iluminada ou movimentada? Em que está ok ser espertinho quando ninguém está olhando? Em que eu só vou respeitar um professor sob risco de palmatória? Em que só não bato no meu colega se ele puder revidar? Quando é que vamos ensinar as pessoas a se dominarem e não a serem dominadas?

5 comentários:

Caroline J. disse...

Eu tenho pra mim que a culpa de tudo isso não é de nenhuma pessoa. Eu nunca achei que a culpa fosse do professor que "não sabe controlar a turma" ou dos alunos que "não sabem se comportar". Existe muitos outros fatores envolvidos nessa relação professor-aluno, jovem-escola... Sei lá. Eu quando ia pra escola, tinha raiva de autoridades. Tinha raiva de ter que estar ali, de ser colocada numa situação que não era minha vontade, de ter que aprender coisas que não me interessavam, de ter que "me comportar" seguindo regras que não me faziam sentido. Eu tinha raiva de toda essa situação do sistema de ensino.
Eu às vezes fantasio em ser professora, em ter uma sala cheia de crianças pra ensinar coisas legais pra elas, pra mostrar coisas fascinantes do mundo, pra ajudá-las a voar com suas próprias asas, pra maravilhá-las, alimentar seu intelecto e seu prazer e sua curiosidade e sua visão do mundo.
Mas ninguém bota as crianças na escola pra isso, né?
O problema todo já vem lá de trás... antes do aluno, antes da família do aluno, antes mesmo do aluno nascer.
Eu não acho que a culpa seja de nenhuma dessas peças do jogo. O tabuleiro, pra mim, já tá todo errado, está apoiado numa coisa errada e quem o movimenta também está errado. E a gente, os alunos e os professores, fica tentando driblar as regras desse jogo, modificá-las, adaptá-las, quando toda a estrutura do jogo já começou errado.

Flávia Simas disse...

Esse texto lavou minha alma. Quando vi a iniciativa da menina falei q legal, é isso aí, tem que lutar pela infraestrutura mesmo. Depois percebi que ela questionando a prática docente e pensei "lá vem merda". Não, a prática docente não é inquestionável e nem intocável. O problema é que o questionamento caiu no mesmo clichê senso-comum de falta de domínio de classe de sempre. A menina tentando fazer seus direitos de consumidora ataca os professores e a sociedade aplaude, porque os culpados são eles mesmo. Olha, esse mundo tá muito errado mesmo, viu.

Marcely Costa disse...

Então, Carol, isso de mudar todo o sistema às vezes me soa meio vago... Tem muitas propostas, a todo tempo ouvimos também isso de que a escola é uma instituição falida, mas em parte eu acredito sim em menos coerção e mais incentivo para aprender. O problema é que esse tipo de pensamento já é comum nas escolas e eu sempre sinto que os alunos querem algo legal, divertido... e nem sempre legal e divertido vai ser o que eles precisam aprender. Por exemplo, fui discutir com eles sobre especismo, eles queriam era sair da sala e ficar brincando, só isso. Olha, eu tento, tento muito tornar a aula adaptada para a turma, mais interessante, mais relevante, o problema é um quando isso se confunde com "entretenha-me". Acho que aprender a aprender é necessário, quer dizer, aprender a se envolver em discussão, a pensar, a criticar, a refletir, não só a brincar e fazer coisas divertidas e rir o tempo todo. Sei que não é isso que propôs, mas é assim que as pessoas pervertem as coisas, e isso que os alunos imaginam que tem que ser.

Caroline J. disse...

Então, eu entendo perfeitamente oq vc tá dizendo, Marce. Por isso q eu digo q o problema vem ainda mais lá de trás, das bases da nossa cultura. Pq vivemos num mundo cheio de obrigações, de "tem que"s, de modos de vida pré-definidos, de ninguem poder fazer oq gosta, de famílias q não funcionam, de trabalhos infelizes, de falta de prazer, de falta de sentido, de desrespeito ao ser humano e isso inclui as crianças, mtas vezes desrespeito q vem dos próprios pais, daí não adianta pegar a escola e querer q ela seja uma "ilha" de "algo certo" no meio de tudo isso. Uma peça certa não funciona num quebra-cabeça errado!
As crianças vão lá já tendo nascido numa cultura estragada, com suas vidas direcionadas previamente, lógico q elas não vão querer oq a escola se propõe. Dependendo, tá todo mundo mais é querendo cair fora desse mundo, imagine se tratando de crianças. Nem sei em que ponto da vida q é mais adequado as crianças aprenderem a aprender, com que idade certos tipos de entendimento e capacidade de aprendizado afloram e quando q querer q elas assimilem isso é meio q forçar a barra, quanto disso é respeitado nos sistemas de ensino, qual a carga que elas tão trazendo da família, da cultura, da visão q elas tem do mundo todo e q nem elas sabem expressar...

Por exemplo, uma vez eu li acho q um professor falando q levou as crianças pra mostrar coisas da paisagem, coisas belas da natureza, as montanhas, etc, e elas nem ligavam, não se maravilhavam como ele achava q elas deviam, e isso foi mto frustrante pra eles... parecia q elas não queriam ver, não davam atenção a quanto a natureza era bonita. Daí depois ele aprendeu q naquela idade as crianças ainda nem tem a capacidade de apreender coisas "distantes", q a atenção delas ainda tá focada a coisas próximas, imediatas. Então aquilo q ele tava querendo mostrar pra elas, não fazia sentido pra elas, entende? Era algo assim, não lembro direito hahaha. Mas é só pra dar um exemplo de q as vezes a gente se frustra pq tá querendo encaixar uma pecinha quadrada num espaço redondo. E não to dizendo que vc tava errada em se frustrar com seus alunos e com tudo isso q vc disse! Eu digo isso de uma forma mais ampla mesmo... a juventude não responder da forma q a gente acha q ela deveria, qdo a gente como cultura nem sabe entender e respeitar as necessidades humanas e seu ritmo... Enfim, falei e filosofei um monte aqui haha mas não sei expressar mto sucintamente oq eu quero dizer =<

Eli Kuhnen disse...

falou o que sempre pensei, e o que sinto em relação a escola atual....