Meu corpo está moído. Moído. Cansada ao extremo, quase desequilibrei e fui ao chão na fila do mercado de tanto cansaço e fraqueza. Quase cochilei durante o filme que o professor passou de manhã na aula. Acordando cedíssimo, dormindo tarde demais por ter que estudar e ler pilhas e pilhas de coisas que se acumularam devido ao trabalho extra que peguei pra fazer por fora (se dependesse só do estágio agora que diminuíram minhas horas...). Andando bastante todos os dias. Toda a minha alegria e satisfação que eram imensas se esvaíram em segundos quando tudo o que queria era ir pra casa pelo menos sentar pra ler minhas coisas, mas tinha que ir ao supermercado. Mal-humorada e até mal-educada se desse.
Mas, não fosse isso, estava radiante. De manhã, peguei embalo e fui praticamente correndo para o trabalho – fiz o percurso na metade do tempo. Estava tomando meu segundo café-com-leite quando chegou a Elaine:
– Estava lá com o aluno X. Que gracinha de menino!
Aluno X parece que descobriu que tinha câncer em meados do ano passado. Morava em outra cidade, mas teve que abandonar familiares, irmãos e amigos pra fazer o tratamento aqui, acompanhado apenas pela mãe. Não se tem muita certeza sobre suas chances de vida. A alegria dele, segundo dizem, é receber os professores para ter aula, pois passa o maior tempo na cama, sozinho. Fico só imaginando que motivador que é dar aula de sintaxe, por exemplo, para alguém com câncer. Discutir sobre a diferença entre adjunto adnominal e predicativo do sujeito.
Elaine continua:
– Tão querido e educado. Carequinha, carequinha... não tem nem sobrancelha, cílios... nada.
Então Elaine, que é como se fosse minha terceira ou quarta mãe, falou sobre como isso faz você se sentir diferente o resto do dia, faz ficar pensando... e dá até desânimo ver os mimadinhos com os quais convivemos diariamente reclamando de suas vidas.
– Eu dizia pra minhas filhas quando elas reclamavam: vocês não sabem o que é sofrimento, vão lá no Pequeno Príncipe um dia pra ver algumas crianças. Aí vocês vão perceber o quanto são felizes e reclamam por besteira.
Então eu contribuí toda sorridente (afinal eu estava alegre):
– Na verdade isso só demonstra o quanto a vida é realmente infeliz. Porque se não bastasse nosso enorme sofrimento em viver, ainda existem problemas maiores que o nosso e nem chorar ou lamentar nossos problemas podemos sem censura.
Consegui fazer a maioria rir e um deles acreditar que sou uma pessoa desesperadamente deprimida e infeliz – “eu já fui assim que nem você, Marcely...”. “É? Então por que regrediu tanto?”. “Não regredi, muito pelo contrário...”. Pedro. Falamos rindo. Adoro ele. Deve ser coisa de Pedro serem pessoas legais.
Me mantive animada assim durante boa parte do dia, até consegui ter paciência com a “aluna dos quiosques”*. Tentei explicar pra ela da forma mais descomplicada todas as 680 vezes que ela me chamou pra tirar dúvidas. Eu sorria toda solícita enquanto ela me olhava com cara de quem não entendia minha língua, mas ficava contente pela atenção dispensada.
– Professora, não entendi essa aqui!
– Qual, querida?
Aponta uma questão do tipo: troque a forma simples do pretérito mais-que-perfeito na frase pela forma composta. 681a vez que vou tentar explicar o que é a forma simples e a composta do pmqp (coisa que a professora já explicou umas 800 vezes).
– Olha, o pretérito mais-que-perfeito a gente usa de duas formas. Uma a gente nem usa mais tanto assim, está mais em livros antigos, coisas mais formais, mas que vocês precisam aprender justamente pra entender quando lerem esse tipo de coisa. Ele é assim: “desenhara, comera, falara”. A gente diz a mesma coisa, só que na forma composta assim: “tinha desenhado, tinha comido, tinha falado, etc.”.
– Hum... – rosto de quem não entendeu porra nenhuma, mas está dizendo hum só pra não me desanimar.
– É assim, ó. Forma simples: desenhara, forma composta: tinha desenhado. Andara é o mesmo que tinha andado, sumira é o mesmo que tinha sumido, falara é o mesmo que tinha falado, amara é o mesmo que...?
– ...amou?
– Não, é sempre com dois, começa sempre com tinha ou havia... Sonhara é o mesmo que tinha sonhado, amara é o mesmo que tinha...?
– Tinha... amar...?
Fico pensando se ela veio treinada de casa pra não tentar estabelecer comunicação com os professores ou o quê. Tenho a impressão que ela não está me escutando, apenas me olhando compenetrada.
– Não... se andara é o mesmo que tinha andado, amara é o mesmo que tinha...?
– Tinha... amou? – olho negativamente – não... tinha amado?
Finalmente! Sorrio incentivando.
– Isso.
Volta a me chamar. Pergunta: “o pretérito mais-que-perfeito é mais usado na fala ou na escrita?”. De alguma forma, sinto que já falei isso pra ela, mas penso que é normal que não tenha entendido.
– Olha, você costuma falar assim: “ontem eu ficara morrendo de sono”?
– Sim!
Ok, ela nunca deve ter feito um auto-exame de suas opções lingüísticas diárias.
– Olha, pensa bem. Imagina, você fala assim: “menina, mal eu conhecera o gatinho e ele já ficou me paquerando!”? – imito até a entonação, pra ela realizar a cena.
– Sim...?
– Você fala: “mal eu conhecera” ou “mal eu tinha conhecido o gatinho”?
Ela olha assustada para a amiga com uma expressão que dizia “ela me fez uma pergunta? Mas eu não entendo perguntas!“
– Conhecera...? – olho negativamente – Tinha conhecido!
– Isso.
Parabéns, eu imagino que ela não preste atenção no que mais velhos falam pressupondo que eles vão falar coisas ininteligíveis. Ou ela não está realmente interessada em saber. Ou pelo menos eu prefira manter minha fé na espécie humana e no futuro da nação.
*Por que “menina dos quiosques”:
Ela está pesquisando no dicionário uma palavra.
– Professora, encontrei “quiosque”, “quiosqueiro”, mas a que eu to procurando não.
– Que palavra está procurando?
– Quiosques.
– Ok.... – falo lentamente tentando manter a seriedade – Mas será que “quiosque” já não serve?
– Mas aqui no texto está com “s”.
– Porque talvez seja mais de um............ – ela me olha do mesmo jeito imaculado de quem presta atenção apenas na curvatura da minha cara, continuo falando lentamente – ... Quando é mais de um costuma ter “s” no final.
– Então serve “quiosque”?
– Serve.
Ela aparenta ainda uma certa resistência, mas obedece.
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