segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ser artista e ser mulher num mundo masculino

   Talvez escrever seja diferente para mulheres, ou para algumas mulheres, ao menos.
    Boa parte dos escritores homens, quando falam sobre seu fazer literário, dizem que escrever é rotina, é trabalho, é com hora marcada, exige concentração e esforço.
   Talvez por isso que o mundo do trabalho – mundo criado por homens – é exatamente assim: rotina, trabalho, esforço e horas marcadas. Não há espaço para explosão de criatividade ou inspiração (muitos dizem, inclusive, que inspiração não existe). Talvez inspiração, assim como intuição, seja característica especial de mulheres (percebam que digo especial, mas não exclusiva, percebam que digo boa parte e algumas e não todas e todos).
   Essa vida toda, percebo, foi uma tentativa vã de me adequar a um sistema em que não me encaixava – um sistema essencialmente masculino. E por não ser como os homens, esforçada e metódica, eu não posso funcionar aqui e não há mérito em ser inspirada e intuitiva – qualidades que sequer existem, porque tudo que é feminino tende a ser negado, subjugado numa cultura masculina.
   Murakami, ao falar que escrever exige concentração, dá o exemplo de alguém que sofre de cárie: se concentra na dor, não se concentra na escrita. Então lembrei de Frida Kahlo (ver o filme sobre ela foi o que deu vida a esse texto). Sentiu dor praticamente a vida inteira – talvez pintasse melhor justamente por causa dessa dor. A dor não a distraía, pelo contrário, a arte era seu grito, a expressão, a extensão da sua própria dor. Eu também escrevo quando dói e porque dói. Remédios e bons momentos me roubam a escrita.
   E por muito tempo não me perdoei o fato de minha personagem principal ser eu mesma, vi sempre isso como falta de talento (pra não dizer de caráter). E, embora existissem escritoras e escritores com a mesma característica, eu não dava atenção – sempre foram os marginais e as mulheres (marginais porque mulheres) que escreviam assim. Admito que quando a gente procura em nossas frestas, sempre encontramos um resto de preconceito, ainda mais quando ele é sobre nós mesmas. É fácil se odiar, ninguém prende ninguém por crimes de ódio contra si mesma.
   Me vi na Frida como um espelho – não em genialidade e força, é claro. Mas vi nas pinturas nascendo para enfeitar o gesso que a imobilizava, nas pinturas que retratavam o próprio rosto e que retratavam tão bem um mundo, porque era o mundo que ela conhecia em primeira pessoa.
   Também não consigo me exceder porque não consigo aceitar a ficção que não fale a verdade, a verdade mais pura e honesta, sobre o que é a dor. A dor precisa ser exata, e a dor pra mim tem uma espécie de copyright. Por exemplo, outro dia vi uma menina, ao lado da mãe que pegava garrafas e plásticos do lixo, empilhando tampinhas coloridas num tabuleiro de jogos. Eu pensei: isso daria um bom conto. Mas quem sou eu pra falar com propriedade da vida desta menina?
   Outro dia vi uma mulher, sentada na rua, ao lado de sacos de lixo, ela estava muito suja, mas tinha um esmalte na mão e pintava as unhas de vermelho. Eu pensei: talvez uma bela fotografia, ao menos, isso a respeitaria... Então concluí que não. Não é certo eu sair do meu apartamento, com minha máquina fotográfica cara, fotografar a dor da pobre moradora de rua, que mesmo suja pinta as unhas de vermelho. Que sei eu da dor dela? Que sei eu de pintar as unhas de vermelho do lado do lixo? Eu não sei, e não vou saber nem imaginando. Eu sofro por ela, por existir um mundo assim. Mas eu nunca saberei o que é sofrer a dor dela.
   Quando a gente é mulher – ou quando a gente sofre – fazer arte não exige que inventemos personagens, existe uma personagem com riqueza de detalhes dentro de nós. De fato, Murakami tinha razão: se estamos com cárie, não vamos nos concentrar na escrita, mas em nós. Mas existe algumas de nós que nos tornamos escrita e que transportamos nossa dor para lá.

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