terça-feira, 13 de maio de 2014

Minha experiência com performance de gênero

    Eu vou dizer pra vocês que entendo pessoas trans como se tivesse sido eu mesma uma um dia, e vocês vão ver como de, alguma maneira, no meu microcosmo, eu fui.
    Quando pequena eu fui criada nessa comunidade religiosa cheia de restrições no que se refere aos costumes sociais externos (eu me identifico com amishs também). Lá os gêneros eram bem delimitados, marcados e separados. Tinha o lado da igreja dos homens, o lado da igreja das mulheres, as atividades dos homens (de poder, é claro) e as atividades das mulheres (de cuidado, alimentação e limpeza, é óbvio). Tinha as regras de vestimenta dos homens e a regra de vestimenta das mulheres (na igreja, nós mulheres usávamos véus), os instrumentos musicais que cada um podia tocar era também separado por gênero e era subentendido que a fúria de Deus era muito maior contra a desobediência das mulheres do que a dos homens. Era claro que uma mulher devia se manter virgem, mas homens, bom, Deus entenderia que eles tinham “instintos” e “não sabiam se conter”, não é mesmo? É uma igreja criada na década de 50, e me parece que se manteve por lá, ou antes. É por isso que adorava ler livros do século XIX, eu me sentia mais naquela época do que no presente. A roupa, o cabelo, as regras eram as mesmas. E os homens também eram livres e as mulheres não. A maioria das minhas “irmãs” da igreja seriam criadas para se tornarem hoje em dia boas donas de casa, ou no máximo enfermeiras e professoras – trabalhos de mulher. Sim, eu falo isso a sério, é exatamente assim.
    É engraçado que nisso tudo eu pouco me incomodei com esses papéis sociais. Eu não me importava com a ideia de que seria professora ou secretária – afinal, eu era mulher –, eu não me importava de ficar do lado de cá da igreja, ou tocar órgão, não poder ter nenhum poder, ou ser impedida de consumar meus desejos sexuais até. No entanto, uma coisa me incomodava em especial, desde que eu era uma menininha: não poder usar maquiagem, não poder usar as roupas da moda, não poder cortar o cabelo. Parecem coisas realmente supérfluas perto de todo o resto, mas pra mim não eram, e hoje eu entendo muito bem por quê. Hoje percebo que se me livrei desse grilhão foi só por causa de um outro que parece não existir, mas é só porque faz parte de um mundo maior – não é à toa que crentes chamam aqui fora de “o mundo”.
    Eu só queria me “encaixar” melhor. Afinal, era por causa da igreja que eu era inadequada. Eu era estranha na escola, estranha na rua – não é à toa que as outras irmãs ficavam restritas ao universo religioso, lá elas não eram inadequadas. Mas eu queria pertencer ao lado de cá. Ainda mais porque eu tinha muito baixa auto-estima. Então eu queria ser “livre” pra me modificar. E assim ser bonita de acordo com os padrões que toda, TODA mulher, é submetida, esteja ela no “mundo” ou não. A gente chora silenciosamente por não poder cobrir nossos fios brancos, porque não podemos cobrir nossas espinhas, porque nosso cabelo é tão longo que não cai no nosso rosto. A gente não era sexy – e ser sexy, RÁ, é também papel de uma mulher, não é?
    Quando finalmente saí eu me senti livre. Verdadeiramente livre. Eu não escolhia mais minhas roupas de acordo com regras escritas num livro, eu escolhia de acordo com “meu gosto”. Eu podia fazer o que eu quisesse – contanto que não fosse má – e isso fazia sentido. E quando pensava que “as feministas” diziam que essas coisas que me faziam sentir livres eram na verdade uma forma de prisão, eu realmente me afastava e ficava até brava. Como ousam querer tirar algo que sempre sonhei? Algo que a tanto custo conquistei? A minha tão sonhada liberdade?
    Demorei pra entender bem isso. Acho que me faltava contato com “mundo” pra perceber que eu sempre estive no “mundo”, só não podia participar dele.
    Essa realidade de querer fazer algo e não poder e isso nos atrair ainda mais é muito velha. É a história do Barba Azul: você não abra aquela porta. Eu sou uma pessoa desobediente – apesar de ser empurrada pra feminilidade, eu sou exatamente isso: desobediente –, se você me disser não, eu faço. E esse “mundo” era muito sedutor. Claro que não o mundo do empoderamento. Porque no “mundo” coisas como “mulher é feita pra servir”, “mulher é feita pra ser casta”, isso tudo anda ainda muito em voga. Então não me ocorreu que eu podia ser de fato livre ou forte. Mas ser modificada pra me encaixar num padrão obviamente me ocorreu. Afinal existe coisa mais propagandeada que isso? Eu só queria ter acesso a esse mundo de aceitação. Eu só quis abrir a porta que eu sabia que existia – e me era negada – não a porta que o feminismo está tentando construir: a porta da igualdade, a porta para a liberdade de fato.
    Hoje percebo que usar maquiagem não é liberdade – embora para nós a quem isso foi negado, sempre vai ser um ato desafiador, acompanhado de um sabor de desobediência. Mas no fim é o que nos submete a um padrão bem escroto. Eu continuo tendo vergonha de mostrar meu rosto nu. Às vezes sonho que uso uma espécie de burca pra sair na rua e ninguém me ver. Meu rosto nu é minha fraqueza, meu medo. E eu iria adiante e diria que pras mulheres que cobrem sua cabeça, provavelmente a história não é muito diferente. Não é uma liberdade, tampouco uma escolha. Mas é uma história, um contexto, uma realidade, a qual nos apegamos ou não. E é extremamente pessoal abdicar ou não. Mas não é assim como se crê tão superficialmente, uma escolha, uma cultura apenas – afinal nossa cultura, oras, é misógina.
    Eu uso essas bijuterias porque gosto ou pra me encaixar? Provavelmente me encaixar é o sentimento que veio primeiro. Mas essas coisas vão se solidificando, a gente acaba se acostumando, gostando, enfim... O que é individual, o que é social? A gente não sabe.
    Mas, como disse, nisso eu me identificava com pessoas trans. Essa vontade de abrir a porta proibida, de desobedecer o não, de seguir uma ideia falsamente libertadora do que é ser bonita – a “beleza feminina”. Toda essa porcaria que na verdade é uma prisão, mas que ao ser negada a gente quis entrar. De uma prisão para outra, que parece mais confortável, mais bonita. Puro marketing que a gente vai engolindo desde criança.
    Mas o paralelo acaba aqui. Eu não vim pra esse mundo de cá para ser mulher. Eu já era mulher muito antes. Essas coisas nunca me fizeram mais ou menos mulher. O que me fez mulher foi uma socialização rígida que me enfraqueceu, que me amedrontou, que me colocou atrás de grades que eu era pequena demais, vulnerável o suficiente para não conseguir fugir. É essa prisão que é ser mulher. Essa prisão não é sequer o papel social que me foi empurrado. É a forma como fui moldada de forma a encaixar nele, mesmo contra a minha vontade. Essa prisão continua em mim mesmo que hoje em dia eu não queira mais ser dona de casa, mas no fundo, lá no fundo, deixa um resíduo – “eu não quero, mas é o que eu devia fazer”. É algo que ecoa lá no fundo de toda mulher que grita: talvez eu devesse me calar. Mesmo aquela que parece muito forte, mesmo nela há uma voz que é difícil de calar que lhe diz: você é frágil. É algo que não se desvencilha facilmente e não tem nada de prazeroso. E é algo que nos precede.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ainda bem q as coisas hoje em dia mudaram,esse lance da religião aprisionar pessoas,sou evangélica e tenho cabelos coloridos,meus "irmaos" da igreja tem tatuagens rs.Fico feliz em saber que hoje eu posso ser eu msm e servir a Deus ><
-Micka

Jacke Frankenstein disse...

Bom, sobre igreja, fui de uma igreja a bastante tempo, na verdade, cresci nela, (CCBB) que não podia cortar os cabelos, tem que usar apenas saias, não pode usar maquiagem, não pode deixar aparecer os ombros, tem que usar véu. Eu sempre achei certo porque cresci dessa forma. Mas, aos poucos, com esse meu gênio de querer descobrir de tudo, ser super curiosa, sempre fui saber o porquê das coisas, e descobrir que certas coisas não necessitavam no nosso tempo. Hoje, eu não me prendo a coisas desse tipo, mas sei que é inevitável sair de uma prisão, porque logo quando vc sai, vc cai em outra. Este é o mundo que nos conforta, pode existir vários lados mas todos haverá um padrão. É difícil ser autentica hoje e perceber se o que vc está sendo é sendo vc mesma ou seguindo mais algum tipo de padrão.