segunda-feira, 10 de julho de 2006

Dia D

Tenho andado extremamente chata, como todo mundo já sabe. Tenho tentado parecer feliz ou não, não sei se não me esforço pouco, mas o Daniel se desgasta com tudo isso. Por tudo isso ontem ele ficou me sufocando na cama: "quer morrer? Morre", "vamos enterrar o corpo, não precisa de cerimônia, só joga ela na vala que ela é atéia, isso...", que nem da outra vez que ele ficou me empurrando pra janela. Então eu desato a rir que é o que ele quer mesmo, me fazer rir pra eu gostar da vida. Meu amor a essa vida dura 10 segundos, enquanto acho graça. Eu nunca entendi a diferença entre alegria e felicidade. A resposta deve ser essa. Eu gosto quando o Daniel "tenta me matar", talvez porque demonstre que eu não quero tanto assim morrer (porque eu luto pra me soltar), ou porque mostre que ele é um garoto mau, e eu gosto de garotos maus. A bondade me assusta, me assusta porque cai por terra minha idéia de que isso é só hipocrisia. Como eu disse, eu tento me justificar fugindo e generalizando. Pode ser, mas eu serei também uma pessoa "ruim"? Minhas fronteiras estão todas esfumaçadas. Isso pode ser considerado um mau vício, o que me assusta. Será só maldade porque não tenho deus no coração? Simplificaria muitas coisas, e eu só acredito pela fé dos outros nisso, não é a minha.
Declaração de amor de uma chata: eu disse ontem ao Daniel: "você é minha única verdade absoluta". Mas será? Ah os chatos me contaminaram. Hoje eu lavava a louça e pensava no meu irmão dizendo: "você não vai escrever livro de auto-ajuda, mas de auto-destruição", e eu acho que vou mesmo. Estava pensando agora que sou uma heroína, em todos os sentidos: heroína de todas minhas histórias, heroína porque levo as pessoas pro inferno a longo prazo. Ou a curto?
Pensava que o Daniel era um dos muitos – todos são – "cavaleiros da vida". Quando eu argumento contra ela ele fica muito assustado e tenta justificá-la. Logo meus argumentos não têm contra-argumento e o Daniel pára e tenta me bater – quando não temos palavras, buscamos essa saída. É como um pai. Mas ele não me bate, obviamente, não no sentido normal de bater... Ele me dá cócegas, me ignora, algo assim que permita fingir que eu não condenei a vida com uma prova irrefutável. Fica fácil só dizer: eu sou uma chata. Mas a verdade é que argumentos – eu sei bem isso – não provam nada. É só um ponto de vista. E os melhores argumentos sempre são os meus com o Daniel. Têm gente muito mais difícil, muito mais teimosa... com essas sou eu que acabo batendo.
Eu tenho horror a que me sufoque, ou a ficar imobilizada. Algumas brincadeiras dessas me alarmam porque eu perco o controle de mim e fico desesperada. Não que o Daniel não tenha noção e abuse, eu que sou muito sensível pra isso. Eu não durmo, nunca mais dormi direito, com ele ao meu lado. Também não consigo escrever, fazer nada. Eu preciso pra muitas coisas estar sozinha, senão perco toda a força de ação e acabo pedindo o copo d'água em vez de ir buscar. As presenças me sufocam, eu só consigo ler. Por quê? Essa é uma coisa que precisa mudar. Talvez seja porque eu sou uma individualista crônica, mórbida, que se sente sufocada e imobilizada fácil demais... Daniel dorme fácil, pesado, mesmo que eu amasse ele contra a parede. E ele vive mesmo sem verdades absolutas, mesmo sem acreditar em deus, é uma coisa estranha, eu nunca entendi porquê ele vive. Nem ele. Acho que a diferença é que ele não acha relevante se fazer essa pergunta. Claro, eu também vivo, com pergunta ou sem. O problema é fazer coisas que me desagradam, aí cai por terra toda minha vontade de viver, que é muito frágil. Ele não liga nem pra isso, ele vive.
Na pensão não era assim, com três pessoas dormindo no mesmo quarto. Claro, minha cama era única, e por mais que eu tentasse, nenhuma pessoa ali tinha o valor de pessoa que dou para o Daniel.
Esse é um post romântico? Não, eu só estou orgulhosa da gente hoje. Como Sartre e Beauvoir deviam ser orgulhosos. Somos assim tão importantes? A importância é a gente que dá.
Como nos livros. Agora estou lendo 1984. Esse é um livro fácil de se interessar, estou lendo com vontade mesmo, esperando "o que vai acontecer". Nem todo o livro é assim, com propósito ativo, os outros devem ser escrito por força do tédio. E estes são os mais aclamados. E eu lhes dou força, possivelmente também serei uma escritora do tédio assim. A "Elite Cultural". É terrível pensar que o intelecto também é moeda.
1984 me lembra Harry Potter. Podem querer me surrar, mas me lembra. São ingleses, estranhos e têm uma sociedade estranha. É sombrio e têm geringonças como o falascreve. E isso não quer dizer que eu seja uma completa ingênua para o que o livro faz referência. Mas é, eu sou uma completa ignorante em matéria de política. Ou não tão completa assim.
Ontem pensei em pedir para o Daniel me matar de verdade, sem me contar. Mas não, tenho medo do inesperado. Além do quê ele seria preso e tudo mais, e o coitado não merece. E eu pensei que eu comprei uma câmera digital que vai chegar semana que vem, imaginei que seria cruel fazer o Daniel receber aquilo comigo morta. Seria como a cena do 21 gramas quando a mulher se emociona com os cadarços da filha. Por que o banal emociona? Ontem eu estava pensando isso. Talvez porque lembre que nessas pequenas coisas a gente não soube aproveitar, ou ainda mais porque essas pequenas coisas representem a vida, e acentuem ainda mais o fato de ela não estar mais lá.
Quanto aos livros e suas qualidades, eu não sou boa crítica. Eu nunca sei o que eu gosto e o que eu não gosto. Nem direito do que eu devo ou não devo gostar. É claro que eu falo isso por maldade, por me referir aos pseudo-intelectuais. Mas eu odeio essa nomenclatura, pra ser displicente e não correr o risco de ser ingênuo todo mundo usa "pseudo", finge desconfiar. O fingimento pra mim também é uma sufocação que me desespera.
Ainda sobre os livros – não estou conseguindo terminar a idéia, por medo de me sufocar também –, fico pensando que talvez seja a moeda do intelecto gostar de livros intelectuais que contenham filosofia e profundidade sobre a vida. Claro que eles são educativos. Mas é preciso dizer que não me sinto mais criança, e me sinto até uma inteligente insuperável (embora eu saiba que isso é um engano, mas também, por saber disso, a inteligência se comprova) e que por isso mesmo os livros intelectuais só batam na mesma tecla. Então preciso ler verdades absolutas, sobre bom e ruim, mas não algo que também leve isso às últimas conseqüências – senão acabo me irritando e também me angustiando. Os outros são quase lugar-comum. Mas, é claro, os outros pontos de vista são esclarecedores, diferentes. Mas os 7 volumes que li talvez tenham sido o exagero que me levou ao fundo do poço.
Outra coisa que me irrita muito é quando me julgam e rotulam, impacientes, sem saber da minha ambivalência. Ah, como detesto quando acham que por eu falar mal do niilismo, eu não sou niilista e vice-versa... é quase um enigma. Ninguém percebe, só eu, muito orgulhosa de ser e não ser. Eis que sou eu a questão. Como eu sou vaidosa. Isso também me esmaga.
Ontem ocorreram dois acidentes, se não me engano. É um barulho que eu sempre escuto por morar no centro: ranger de pneus freando e um "pô" seco. Por ser muito comum de se ouvir, eu antes achava que era só o pessoal evitando um acidente. Até que eu descobri que o pô realmente é uma batida. Eu achava que o barulho deveria ser bem mais estilhaçante e sonoro, mas não é. Ontem, domingo, eu estava indo pela primeira vez à feirinha do Largo da Ordem, eu e o Daniel estamos de ir faz séculos, mas somos preguiçosos, e eu odeio sair de manhã. Então ouvimos o barulho de acidente – foi aí que descobri –, eu não entendi em primeiro momento porque um homem inverteu de caminho de uma hora pra outra. Fiquei admirada: "poxa, comé que eles sabem pelo som?", era nosso caminho, um Audi no meio da rua, dois motoqueiros se revirando no chão, no meio do cruzamento. Sendo que me permito rir de minhas próprias desgraças, lógico que é um pequeno passo pra eu rir da dos outros. Primeiro eu comentei para o Daniel o fato de os caras estarem se contorcendo só porque viram que era um Audi que tinha batido neles, todo brasileiro tem dom pra jogador de futebol, dom pra cavar falta. Eles não pareciam de fato feridos, senão eu teria ficado assustada. Ficaram lá, deitados, em plena faixa de pedestres e eu ainda disse pro Dã: poxa, ninguém vem tirar os corpos? Tá atrapalhando pra que a gente atravesse. Mudamos de rota, atravessamos mais pra frente.
O dia acinzentava e eu comentava para o Daniel do povo que ficava se juntando pra ver o acidente, "deveria comentar: ihh, já vi muito disso, à primeira vista nada acontece, mas dá uma concussão e o fulano morre em dois dias". Por eu ser pedestre odeio carros e motos. Principalmente os que violam o sinal, porque provavelmente foi isso que aconteceu pra que houvesse acidente.
Daniel ria, todos ríamos e o dia ia ficando negro. 11h já parecia 18h... Chegamos na feirinha. Aliás, sem mentira, colocamos o pé no meio das barracas e caiu um pingo grosso em nós dois. Depois mais outro e outro. A chuva caiu violenta, todo mundo corria apavorado, as barraquinhas fechavam desesperadas. E eu olhando muito sarcástica daquilo tudo. Eu digo que Machado é deus. O guarda-chuva quebrou, Daniel centralizava o objeto mais na própria cabeça que na minha, tentei ignorar e ao mesmo tempo sentir auto-comiseração. Segurei o orgulho e fui andando molhada e com frio. E cantando. O que mais me dignava era o fato de que nada poderia piorar meus dias. Embora outro dia eu pensasse rindo: não é tão ruim que ainda não possa piorar. Acho que estava travando uma batalhinha interna com deus, não deixar que ele sentisse prazer nenhum em me castigar, não me entreguei, e fiz desfeita: "foda-se, to me divertindo, ó!". Orgulhosa.

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