segunda-feira, 17 de julho de 2006

Endentro

Em algum lugar alguém deve ter errado. Uma questão crucial parece ser se as pessoas são ou não são corajosas em viver. Ninguém parece gostar muito, mas dizem: é assim mesmo – e vivem. Bernadete entrega papel perfumado na rua, Jair é cobrador de ônibus, e a essas seus filhos podem brincar e comer bem. Creio que tenham filhos. Talvez Bernadete só tenha amigos.
Renato descobriu aos 13 que era gay ao sair com um travesti de quem se tornou amigo. Este o ajudou a viver quando foi expulso de casa pelos pais. Renato vivia sempre atrás de Lara, aos pés de Lara, queria ser Lara que parecia tão longe dos problemas e das imperfeições do mundo. Nunca tinha sido humilhado, certamente nunca tinha sido criticado. Ele sabia o que era e o que se devia ser e Renato se perguntava por que aquela arma não tinha nascido com ele. Por que só ele?
Não sabia andar de salto. Ah! Não sabia. Riam dele pelas ruas, mas de alguma forma, atrás de Lara ele se sentia só metade ele, metade estava iluminada pelo brilho dela. Ela, Lara, à noite, perfeitamente vestida, composta, maravilhosa, perfeita, digna e confiante. Era um aprendiz. E por que Lara o aceitava? Porque gostava da adoração? De um ser medíocre como ele? Ah, a humilhação! A peruca barata, desfiada, mal segura na cabeça.Tinha as pernas finas, não sustentava o corpo por cima das sandálias. A tomara-que-caia caía... não tinha peitos. Ela não. Linda, bem penteada nos cabelos naturais e loiros, a maquiagem retocada, bem vestida, voz melodiosa. Era amor, não era?
No cambalear daquelas pernas era o ritmo do coração de Luzia, vai pra frente, tropeça pra trás... ah, a longa viagem que o coração fazia para trás! Doía... Viu Renato naquela noite, teve pena, quis dar a ele o corpo e a beleza de Lara. Um minuto o viu e sumiu. Onde estava mesmo? Na sua dor... era preciso explicar aquela dor... Mas era só o coração que parecia chorar pra ela... e ele fazia: ahuuuú, como um gemido de dor sentido, de quem chora. Como a mulher que tinha visto chorando uma vez num carro, de óculos escuros, a chorar convulsivamente, era assim que diziam nos livros, e aquela mulher chorava doído. Então Luzia pensou: deve ter perdido o filho, deve estar voltando do enterro. Porque o choro era de desgraça. Ou descobrira uma doença ruim, ou era o marido que tinha morrido. Luzia nutria interesses mórbidos como os urubus de acidente então. Era a curiosidade de saber se as pessoas realmente sofriam caladas. E por que essa arma não nascera com ela? Por que só ela?
Todos têm pedacinhos de alma faltando, por isso agora vendem tantos livros de auto-ajuda, porque é algo que faz falta às pessoas: saber viver. Quem disse que nós viventes não sabemos viver? Alguém está nos empulhando. É a sociedade, você diz... Eu não diria isso. É o mundo. O mundo é assim mesmo. E agora eu irei viver.

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