quinta-feira, 27 de julho de 2006

O pintor

Nos encontrávamos praticamente todas as tardes no apartamento dele, num prédio pequeno, pobre e sem portaria, no qual eu me sentia completamente segura de entrar e sair sem despertar curiosidade. Invariavelmente deitávamos nus na cama e eu falava do meu dia, ele falava dos quadros dele, não fazíamos sexo sempre, era tudo seco e leve como muitas daquelas tardes embaixo do lençol. Muitas das coisas que eu dizia eram sem a mínima importância, recortes do meu dia, enquanto ele, sem o menor ressentimento, me ouvia com até quase prazer. E então ele me falava de coisas muito, muito importantes. No quarto tinha apenas um cavalete preenchido por um quadro à caminho. Ele sempre me falava desse quadro, mas não me mostrava linhas, nem cores, apenas me dizia no que consistia um intrincado problema em pintá-lo. Eram problemas de artista que eu quase nunca nem podia entender. Os meus problemas nunca passavam de talões de cheques, meu marido, meu patrão e algumas das crianças que eu cuidava pra ganhar dinheiro. Como eu trabalhava quase sempre à noite, tinha muitas das minhas tardes livres que nem sempre gastava com ele – às vezes saía, ia ver lojas na rua, passar pelos carros e pelas pessoas. Para dizer que também sou artista, poderia comparar minhas tardes com um livre e simples allegro, sem peso algum, o que tornava tudo muito importante e profundo, mas que eu sempre me esforçava em não manchar com importâncias.
Nunca falava com ele de outra forma, longe daquelas paredes. Nunca avisava quando ia. Muitas vezes eu dava de cara na porta, e em outras eu me permitia imaginar que ele esperava que eu fosse, mas eu não ia, o que podia tornar tudo até um pouco da pintura que faltava.
Naquele dia eu tinha ido de manhã pegar um dinheiro no caixa, um desconto de um cheque que meu patrão tinha me dado. Eram só 30 reais, algo que tinha ganho por trabalhar num fim de semana cuidando dos filhos dele enquanto ele saía para ir ao teatro. Ali por perto ficava o tal apartamento e eu lembrava de ter encontrado ele uma vez naquela rua e de termos trocado um sorriso e mais nada. Então combinei comigo mesma de nesse dia ir ver ele.
Quando cheguei lá e deitei nos braços dele ficamos só conversando, então eu me pus a contar sobre como a maldita da caixa não aceitou que eu descontasse o cheque e levasse meus trinta reais sem apresentar carteira de identidade. Simplesmente eram regras do banco, e eu tinha perdido meu tempo numa fila enorme. E ela sequer aceitava minha xerox autenticada. A custo, em coisas assim, não grito com essas benditas caixas, mas eu sei que a culpa toda é do sistema, eu disse rindo, e elas estão lá só pra fazer o trabalho delas. Disso passei a falar da noite que fui trabalhar, das crianças, de quanto meu patrão era impossível, reclamei do pouco que ele tinha me dado por trabalhar no sábado à noite... tudo bem que não fosse mais que três horas, mas o homem era podre de rico! Contei que tinha falado com minha mãe num dia antes e de como nossa conversa não durava mais que minutos por medo da conta de telefone, por medo do nosso relacionamento que ia mal. E, como ele não me interrompia, eu ia falando, mas por pouco tempo virei e notei que ele estava dormindo. Isso nunca tinha acontecido, por um momento quase cheguei a ficar magoada, mas então percebi que ele dormia de um sono muito mais profundo. Devia ter, enfim, bebido uma caixa de comprimidos. E estava ali com o rosto tranqüilo e branco sobre meu braço como um bebê embalado para dormir. Me senti um pouco derretida e triste, mas minhas tardes eram leves, como eu disse, continuei falando pela tarde inteira de coisas diminutas e sem importância como se nada tivesse acontecido, antes de anoitecer me vesti e fui embora. Creio que ele nem tivesse terminado o quadro.

Nenhum comentário: