sexta-feira, 21 de julho de 2006

XV de Novembro, os dias, a menininha de 10 reais, sobre como o trabalho indigna o homem, a hipocrisia mundial e a crise interna

Lá fora está um lindo dia. Aliás, os dias são sempre bonitos, faça sol ou chuva. Ultimamente tem feito sempre sol, vento fresco, céu azul claro, árvores brilhantes e esvoaçantes, pássaros cantando e, ao anoitecer, um pôr-do-sol sempre lindo. Dia desses era um vermelho puxado pra salmão, ontem foi cor-de-rosa bem suave, misturado com o azul claro e amarelo e hoje eu não sei qual vai ser, obviamente, mas inevitavelmente será bonito. As noites são sempre lindas também, frescas, noites, como todas noites são lindas me faz criar esperança e me dizer: "você deve virar notívaga". As manhãs são brancas. A brisa e as árvores são coisas que eu mais gosto. À noite são os prédios. Luz acesa, detalhes dentro de uma casa. O aconchego. Eu sempre penso numa futura minha casa. Outro dia eu voltava da psicóloga e ia pela XV à noite (hoje andei pela XV de manhã e fico pensando – minha cidade é linda, quando minha mãe vir eu vou mostrar a ela...(mas ela nunca vem)), então, eu vinha pela XV à noite e uma menina passou com a mãe e apontou pra dentro do fliperama que vende de tudo "aii que blusa liiinda", fiquei olhando qual era a blusa. Imagino que fosse alguma daquelas dos Rebeldes, pensei um pouco na minha mãe e pensei em mim como mãe: "largue de frescura, menina, logo você cresce e vai deixar de gostar disso", eu achei isso muito engraçado. Aí um moço um pouquinho gordo e loiro e que falava embolado parou e disse: "ai que moça linda", e pegou no meu braço, e me explicou que eu era linda e pensou que não custava nada parar pra falar comigo. Pelo jeito naquele mesmo momento o celular dele vibrou – eu nunca percebo quando o celular de alguém vibra, as pessoas se calam de repente e é tão esquisito... – ele disse onde estava rapidamente, que já estava indo e desligou, pensei se não era alguma namorada, mas não com nenhum rancor do menino – afinal ele tinha me elogiado –, apenas fiquei rindo da noite por dentro. Ele voltou a falar qualquer coisa, quem ele era, tentou perguntar o que eu fazia e eu disse. Pensei em dizer logo que era casada e tal, mas não – pensei – não tem porquê dizer isso, seria tão arrogante. Só respondi. Ele perguntou se eu gostava de fliperama, já que eu estava olhando pra um. Eu disse que não. Surpreendida em flagrante. Nunca mais vou vê-lo, não me preocupei com nada, nem com o fato de estar sendo banal e monossilábica, sem esforço algum para ser simpática eu geralmente até fico mais simpática, porque não me preocupo tanto e só faço. Logo ele foi embora, não conseguiu me vender nada – e ah, andar na XV é dizer não pelo menos cinco vezes. Não para propagandistas, religiosos e miseráveis. Ontem um menininho pediu uma moeda pra comprar pão, acho que ele me pediu só porque eu estava olhando pra ele e pensando "e se eu puxasse ele pra conversar e dissesse: você é feliz agora? Então por que não se mata, você nunca será feliz.". Ele perdeu a infância. É, a infância, única época que a gente tem pra ser feliz. Eu não acredito muito nisso, mas pelo menos quando criança se tem menos responsabilidade e tal... Mas eu não disse nada, só o habitual não, e por preguiça. Que custava, só uma moedinha... Talvez eu só queira que os miseráveis se matem. Ora, por que eles não se matam? Eu me pergunto isso de todo mundo. Então a voz racional dentro de mim diz: "por que você não se mata?", e então eu sinto pena de todos nós, os miseráveis. Depois, quando voltei com as moedinhas, ele não estava mais lá. Pra que são essa moedinhas? Obviamente não são para o pão. Todo mundo sempre diz – nossos pais sempre nos ensinam: nunca é para o pão. Quando pequena pra mim as moedinhas representava doce na casa dos meus primos. Quando pequena eu mal tocava em dinheiro. Meus primos vire e mexe ganhavam pra comprar doce. Eu geralmente só ganhava doce. Por isso virei hippie, eu nunca entendi qual é que era a das moedinhas. Por isso lembrei que tinha balas e deveria ter dado balas para o menininho.
Ainda na XV, naquela noite, vi um homem bêbado com uma garotinha quase bebê no colo chorando. Chorando e com o dedo na boca – e o que mais me chamou a atenção foi o dedo na boca, porque a menina estava suja, e eu fiquei com nojo e vontade de dizer: "tira esse dedo da boca!", e a menina chorava como toda criança suja de cabelo loiro ralo. E tinha policial em volta do bêbado. Mais pra frente tinham umas mulheres conversando: "é, ele queria vender a menina por R$10,00, sim, 10 reais, ele foi, tava agredindo o homem... aí chamaram a polícia". Só não entendi do que reclamavam. 10 reais? É uma pechincha! Poxa, Praticamente um real por mês na barriga, e sem todo aquele esforço que se tem quando está grávida. Desconta celulites, estrias e dor de parto. E mais uma porção de fraldas, já que a menina já devia ter aprendido a ir ao banheiro. Já vi muito cachorro por 200 ou mais. Mas também, cachorro de raça. A menina não era de raça, é certo. Mas 10 reais? Quase comprei pra depois vender por 20.
Mentira, é claro. Na hora eu só pensei no meu querido Enrico e sua idolatria ao álcool. Sim, veja o quanto o álcool faz as pessoas felizes! Andar maltrapilho e vender crianças por 10 mangos pra certamente comprar umas garrafas de bebida é tudo o que um homem pode almejar. O quê? Ganhar dinheiro, a longo prazo, por meio de sexo. E bebida. Sexo e bebida. Não era essa a grandessíssima resposta para todos os males do mundo?
Não, a resposta é meditar. É, ultimamente eu estava pensando em virar budista. Eu descobri que é uma religião-psicologia-filosofia-de-vida bacana, eu já escrevi mil posts budistas sem o saber. Primeiro que a finalidade de todo o ritual é o fim do ciclo da vida, o samsara lá, ora, quer coisa melhor? Lutar pra deixar de viver? Isso que é religião feita pra mim! Ainda mais que o lutar é na maior parte ficar parado sem fazer nada. Sim, e tem mais todo aquele negócio que viver é sofrer e tralálás, e que a vida nunca teve começo – nem deus – e nem tem hierarquia, nem pecado nem... nada. Aliás, quando você chegar ao nada estará iluminado! Eu realmente achei legal, e estou tão desesperadoramente desesperada que pensei em apelar para alguma religião (e de fato essa não agride minha descrença), mas de qualquer forma eu tenho é preguiça, tem que pagar e não sei se teria muita graça pra mim ficar trocando cor de vela e acreditando em frases de sabedoria – frases de sabedoria são tão monótonas...! Se bem que vela e cor... pelo menos cor é legal.
O que rola é que eu simplesmente penso: "eu não tenho tempo pra isso". Não, eu não tenho tempo pra de manhã acordar e ficar meditando. Não porque se eu acordar mais cedo do que eu acordo eu vou cair em sono profundo enquanto medito. E sonhar com alguma espécie de nirvana. E depois... e depois o que eu estou fazendo aqui ainda? Sim, pelo medo de morrer de sempre. Os dias são todos muito lindos, sim, mas por dentro de mim está tudo encarquilhado e cansei dos sarcasmos – ok, ok, não totalmente. Eu gosto de ter meu dinheiro. Gosto de ter meu dinheiro pra dar todo pro Daniel, pra minha sogra, comprar comida e todas essas coisas. Gosto. De poder decidir com o que eu irei gastar. Mas apesar dessa finíssima camada de prazer chocho eu ainda me canso, sou vagabuuunda, como minha mãe tantas vezes me chamou. Sim, eu D-E-T-E-S-T-O trabalhar. Sim, eu sei que não sou a única. Mas é péssimo ter dias lindos sem poder olhar por muito tempo. Aliás, é cretiníssimo esse tipo de coisa. C-R-E-T-I-N-O. Detestável. Eu vivo por medo de morrer, eu só gostaria de viver se pudesse me afundar com gosto na brisa, nas árvores, nos pores-do-sol. E não vou. E se for, Daniel nem vai estar comigo. Vai estar enfurnado naquela empresinha medíocre, com fins burocráticos, fazendo coisas que só eles acreditam ter importância – e mesmo assim se iludindo com muito esforço –, sem ver pôr-do-sol, sem ver o dia. Será que isso me incomoda tanto, será que destrói metade do meu dia, das minhas árvores, das minhas brisas e dos meus pores-do-sol porque eu amo ele? Ou porque eu queria mostrar essas coisas pra ele, pra que elas não fossem metade. Ou porque me sinto responsável pela mediocridade do mundo e nossa? Eu sei que o último sim.
É preciso fazer alguma coisa. O quê? Trabalhos por conta própria, fim dessa vida moderna e civilizada, fim de toda a evolução da espécie, fim de toda lógica, de toda a praticidade, de toda a realidade... Não, eu só acho que a gente, todo mundo, deveria trabalhar menos. Duas, no máximo 4 horas. Isso quer dizer fim do capitalismo, afinal eu não sou tão burra a ponto de saber que uma coisa não funciona com a outra. Isso não quer dizer utopia. Isso quer dizer que as coisas não são irremediavelmente ruins. Não pode ser! Vocês entendem que por mais meiga e sonhadora que eu possa estar sendo em acreditar que as coisas podem ser desse outro jeito, achar que não tem como mudar é também outra forma de estupidez?
Mas, tudo bem, pode ser que não mude. É bem provável. Então todos fingem que são felizes. E o fingimento todo é doloroso. Eu fico olhando, olhando pras pessoas e é desesperador. Reparem, todos têm dentro de si uma fossa, um buraco negro tapado com sorrisos e falsidades. Todos dizem coisas por mesura, por parecer isso e aquilo pra tapar todo o buraco que todos nós temos e seria fraqueza e mesmo absurdo destapar. Então eu que não me engano e reclamo mesmo fico com medo de "levar a vida simplesmente......" e blábláblá, eu não me conformo e não me contento não. Tem que ter uma forma de ser feliz, tá? Depois eu que sou a pessimista! Todos são angustiantes. Seja inteligente ou não, velho ou novo, todos fogem. Os trabalhadores trabalham mais e fazem sala para eternas visitas e conservam fachadas impecáveis de pura banalidade papagaia. E têm os intelectuais que fazem uma pose blasé de quem sabe que o buraco está lá, mas não se preocupa com isso, porque se preocupar é coisa para perdedores sem a menor pose e marketing pessoal. Todos fogem do fato. E são tão covardes quanto eu. Mas eu me deparo com o fato e digo pra ele: "e aí? Me mato ou te tapo de verdade?". Ou seja, é fácil concluir: o meu problema é ser melhor que todo mundo.

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