quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Ave ignorância

Acordei: 7 horas da manhã, gosto de acordar logo cedo. Sinto-me feliz, satisfeito, tomo café, fodo com os outros e nem percebo. Sou feliz. Escrevo auto-ajuda, dou aulas, converso com todos, me sinto útil, vencedor, ajudo o mundo. Um verdadeiro líder. Converso com meu filho, aturo minha mulher (ou ex...), me mantenho ocupado o dia inteiro. Sou um homem ocupado ajudando o mundo. Faço poesias, sou amado por alguns alunos, alguns amigos. Faço o que deve ser feito, vivo satisfeito e feliz. Muitos colegas. Vivo em harmonia com o mundo. Nunca nem desconfiaria o quanto estou abaixo da mediocridade, não aceito críticas. Vou morrer na mediocridade, mas fui feliz a vida toda.
Enquanto ela. Ela viveu querendo ser apenas feliz, mas tinha projetos demais, sonhos demais acima da mediocridade. Por isso tinha auto-crítica, por isso vivia descontente consigo, com o mundo todo. Jamais leria/escreveria uma auto-ajuda. Jamais se achou capaz de poesia e, quando sim, não confiava nelas como eu confiei em cada palavra e atitude minha.
É óbvio – e isso não sou eu que digo, pois vivo numa ignorância bastante ocupada, cheia de diplomas e certificados –, é óbvio que a mediocridade é necessidade básica pra qualquer alegria ou felicidade. Fernando Pessoa, ou seu heterônimo, sabia disso e ele sim foi um grande homem. Mas deve ter sofrido. No mínimo trabalhado muito – de verdade. Eu quero ajudar o mundo e apenas faço meus rabiscos toscos, desiguais, cuspindo idiotice. Eu me sinto útil e satisfeito porque só vou seguindo a correnteza. Eu como chocolates como se não houvesse metafísica. Eu acredito em Jesus e Paulo Freire.
Quando eu morrer, é bem possível, não serei lembrado. Mas creio que vou, que construo edifícios muito estáveis (não sei diferenciar concreto de palha).
Enquanto ela, ela sabe que seu único grande feito que parece ter sido pintar o cabelo. Pintar o cabelo, alguns trocadilhos, uns posts e um conto. Tudo ainda muito palha – o problema é que ela diferencia.
A lembrança que nós tanto dependemos pra continuar vivos, isso tudo é do mesmo medo de morrer. Mas se morre. Eu vou para o céu. Ela acha que simplesmente some. E que seus ossos não virarão de chocolate só porque fez, ou porque foi algo.
É como se a vida fosse seu único Deus: aquele que se Teme dizendo que se ama. Ela Teme a vida – ou a morte, dá no mesmo, porque só na vida se tem consciência da morte. Ela teme e vive de temor. Um dia ela virou atéia porque achava impossível sustentar uma relação baseada só em medo. Quanto à vida, é o mesmo.
Eu não, eu pergunto amenidades para algum conhecido cansado do meu interrogatório. E eu nem desconfio.

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