Eu não lembro de ser tão complicado viver quando eu era criança. Acho que todo mundo sente isso, por isso gostam tanto de criança e se sentem tão nostálgicos. Parece que após essa fase vão nascendo neuroses por cima de neuroses (adolescência) e a gente enfim se torna adulto. Eu estava lendo uma frase num orkut duma amiga que dizia assim:
"A espantosa realidade das coisas.
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é.
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra.
E quanto isso me basta.
Basta existir para ser completo"
Como dizia ser do Fernando Pessoa, imaginei que fosse do Caeiro – e é mesmo, pelo jeito. Bom, eu sei que estou mais para Álvaro de Campos e isso não é nenhuma novidade... mas o que eu queria dizer, mesmo assim, é que eu me sinto incapaz de compreender de fato essa poesia. Eu posso dizer, num momento de euforia, que a realidade das coisas anda me espantando e eu me maravilho com elas, isso sim, mas não posso dizer que isso é um estado permanente a ser alcançado apenas por me bastar, por me ser completa. Creio que quem se sente assim é o Rafael (e por isso ele discute tanto comigo sobre o prazer da vida), mas eu não me sinto. Eu devo estar muito fodida psicologicamente, cheia de tralhas jogadas por todos os lados do consciente e do inconsciente, meu quartinho cerebral deve ser um chiqueiro e o chão impossível de caminhar de tão desgastado e podre para me sentir incomodada só por estar alagada de mim mesma. Tédio é uma coisa que todos sentem, eu sei, e eu sei como ninguém como ele é, mas além do tédio estou sempre em estado de suspense, de terror pelo que será a seguir, de impaciência, cheia de querer-mas-não-querer fazer, de me atormentar sem conseguir resolver com o que virá em seguida. Ficar sozinha comigo mesma, muitas vezes, é o meu pior castigo. Meu desejo pelas coisas é tão brando que vence o nada fazer. Nada vale a pena, tudo é um desgaste sem prazer que o valha. Por isso acho que sou tão maníaca suicida, pensar que vou me livrar do meu eu é uma idéia que me alivia da constante luta interior que eu vivo comigo mesma,
Quando o Eros disse que ele não podia gastar o dinheiro todo se eu estivesse prestes a morrer, senão não sobraria nada pra ele viver, fiquei um tanto chateada por perceber que ele não depende de mim pra seguir com a vida. E fiquei ainda mais chateada por estar chateada com isso, afinal se ele é mais resistente que eu e ama a vida eu deveria apoiá-lo. E, depois, eu fiquei satisfeita com a idéia, porque no fim das contas ele, tal qual aquele-que-não-pode-ser-nomeado, demonstrou não precisar de mim viva, exatamente como eu suspeitava e eles afirmavam de pé juntos não ser verdade. Isso fermentou com alegria meu desejo de pular do prédio, por um instante, mas como eu sei que provavelmente eu evitaria fazer isso de fato por ser uma decisão fatal e incorrigível, fiquei feliz ao pensar que eu poderia estar com uma doença fatal. Eu devo ser a única pessoa que inveja o menininho do colégio que está com tumor no cérebro e só tem 2 meses de vida. Eu imagino que pra ele, uma criança, tal perspectiva é horrorosa, afinal a vida pra ele ainda não perdeu a agradabilidade da infância nem os sonhos. Mas pra mim, embora haja ainda os sonhos, eu sei que por mais sonhos realizados ou sonhados eu sempre permanecerei nessa impaciência e conflito interno com os quais convivo 80% do meu tempo – ou seja, tomam mais meu tempo que os sonhos. Analisado os prós e contras, fiquei contente em ter as minhas contrações musculares do além, sinalizando um possível tumor na cabeça. Se doer, provavelmente me darão remédios e, como eu imagino, se não houver cura, não precisarei fazer nenhum doloroso tratamento. Eu terei 2 meses de vida pra aproveitar atentamente e, por fim, minha impaciência será desnecessária: se não faço não me preocuparei, pois não há necessidade de que nada seja feito. Foi assim que eu comecei a nutrir a esperança mórbida de estar doente terminal. Eu sei que pra vocês pode soar um absurdo, uma criancice, uma heresia contra a vida e contra os doentes, mas, ao contrário da maioria das pessoas (a partir do que elas dizem), eu não sou muito contente vivendo. Fico pensando que se tiver mesmo um tumor, será que eu deixarei de "criancice" e ficarei chateada? Por enquanto, a possibilidade me relaxa. Se me pego descontente, logo penso nessa alternativa e relaxo: logo irá terminar e esses 2 meses vão ser muito bons. Eu penso nos detalhes: e se de repente eu começar a gostar de viver e ficar triste por morrer? Mas por que a diferença súbita de percepção? Não acredito muito nisso. E se eu começar a pensar nos sonhos que nunca irei realizar? Nunca darei aula, nunca terei minha casa colorida, nunca terei minha gata, nunca terei uma filha. Mas nunca mais viverei cheia de dúvidas e sacrifícios e dificuldades inúteis e medos e afliçõezinhas diárias. E nesses dois meses, quando eu descobrir que vou morrer de fato, irei fazer o que quiser, sem planejar nada, vou sair, vou festejar, meus amigos que não tenho não me dirão não, o Eros vai ficar comigo, eu vou fazer coisas de fato durante o tempo todo, sem espaço pra afliçõezinhas e irei comprar finalmente as frutas que me deixam curiosa no mercado municipal. Irei pintar o cabelo de turquesa e irei viajar pra conhecer mais do sul. Pode até ser que tenha uma gata e, enfim, alugue uma casa colorida só pra ver como é que é... Se eu fosse morrer daqui a dois meses. eu seria feliz.
Relendo tudo, comecei a suspeitar que o meu problema é ser impaciente e reprimida ao mesmo tempo. Uma pessoa antagônica entre a menina mimada que deseja e deseja pra ontem e a menina obediente que levava pancada se não se domasse e fizesse tal qual a mãe mandasse – também pra ontem. E o meu eu escolhe não obedecer nenhuma das meninas, porque uma precisa mesmo ser domada e a outra não tem mais ninguém pra dar pancada. Mas, no fundo, eu sei quem eu quero escolher. Se eu fosse morrer, eu poderia ser mimada, pois não precisaria da aceitação de ninguém. Ninguém mais diria que eu estou atrapalhando, que eu não posso, que não é assim, que pra fazer o que se quer precisa de um tíquete x ou y. Eu poderia viver anarquicamente, sem respeitar as minha regras nem as regras sociais de ninguém. Viver livremente, fazendo o que realmente eu quero sem ficar me reprimindo e me preocupando o tempo todo. Enfim, aproveitar de fato a vida e não essa burocracia que a gente chama de sociedade.
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