quarta-feira, 19 de maio de 2010

Felicidade

§§§§Dizem que seria possível ser feliz eternamente se fôssemos cães, ou gatos, ou algum outro animal que não humano. Obviamente, quem diz isso não são os cães ou os gatos, mas os humanos que se consideram sempre únicos, inclusive na certeza de que a tristeza é intrínseca ao seu próprio ser.
§§§§Dos outros animais só acredito que se possa afirmar algo se formos nós eles próprios, mas não somos. Certamente, até hoje só consegui obter uma comunicação segura com humanos, quanto ao resto são meras hipóteses. Podemos afirmar que um cão se encontra triste porque chora, contente porque abana o rabo, mas ainda, acredito, não passam de suposições baseadas na nossa própria vivência humana – e não canina, nunca fomos cachorros. Posso estar sendo excessivamente cética, mas podia ser pior. Poderíamos duvidar até de que haja comunicação segura entre os próprios humanos. Mas dado que essa discussão só poderia ser formulada por meio de palavras, creio que seja incoerente discutir tal coisa...
§§§§Como sempre, humana que sou, me distanciei do assunto que é: seria possível que nós, humanos, fôssemos eternamente felizes? Como conhecer a felicidade sem nunca sentir tristeza? E, eu adiciono, será necessário saber e conhecer a própria felicidade para senti-la?
§§§§Pois em Felicitown, ou Felicidade, como preferiam os puristas, as pessoas eram eternamente felizes. Não digo como isso era possível, portanto – pulando essa parte de explicar eternidade e existência – apenas digo que existia e deixe para os filósofos de lá – que são felicidadãos de verdade e sabem melhor como investigar isso (...ou não) – explicarem.
§§§§Pois bem, Ana era uma felicidadã exemplar, era professora e adorava dar suas aulas de geografia – ainda que o mundo todo fosse Felicitown, sem fronteiras, e todos eram como um só vivendo só pelo dia de hoje, sem problemas.
§§§§ Isso não quer dizer, é claro, que ela não adorasse fazer outras coisas – afinal, como ela poderia detestar fazer algo sendo sempre feliz? Bom, você pode me dizer: simplesmente não precisando fazer essa coisa. E era assim mesmo. Sim, existiam coisas que Ana detestaria fazer, mas ela jamais faria essas coisas simplesmente porque era natural que ela fosse feliz fazendo coisas que a faziam feliz. Por que ela faria algo que a fizesse infeliz? Seria um paradoxo em Felicitown e um contrasenso para qualquer felicidadão. Não havia necessidade disso. “Nem os mais masoquistas?”, você pode perguntar, mas lá não tinha como existir masoquistas se não existia tristeza nem dor. Sendo as pessoas eternas – já disse, estou encarregada de explicar o ponto da felicidade, não o da eternidade, mas vou só entrar no assunto, então, um pouquinho – elas não tinham como se machucar nem ficar doentes (ou velhas...), logo era inconcebível que existisse alguém que quisesse machucar alguém ou ser machucado.
§§§§ E eu diria que, ainda que um felicidadão, por uma paradoxal infelicidade, fosse levado a fazer algo que detestasse, nem isso conseguiria abalar sua inabalável felicidade, um bem estar enorme era o principal sentimento inesgotável dentro de cada felicidadão, fosse passando roupas, limpando privadas muito sujas, fosse falando algo muito constrangedor, sem querer, em público. Felicidadãos eram assim justamente não porque Felicitown fosse justa e perfeita – porque era e vocês que não são felicidadãos sabem que mesmo a perfeição enjoa, entedia e enlouquece o mais bem resolvido dos cidadãos comuns –, mas porque acima de tudo eles tinham um bem-estar inesgotável, e simplesmente coisas como tédio e angústia não existiam nem em seu vocabulário nem em suas vidas.
§§§§ – Puxa, querido, esse seu crepe de queijo está com a massa meio molenga, que gosto horrível! Você sabe que eu detesto essa massa quando não está crocante... – diria Ana nesse dia. Mas nem por isso sua felicidade foi, por um segundo sequer, abalada. Ela dizia aquilo rindo, cuspindo pedacinhos molengos e nojentos de massa, com aquele bom-humor inalterável de sempre, muito contente de simplesmente existir e estar cuspindo pedacinhos molengos de crepe.
– Me desculpe, da próxima vez eu deixarei assar a massa por mais tempo... – disse o namorado de Ana também inabalavelmente contente, mesmo falhando, sem a menor ferida de orgulho (afinal lá não existia ferida), apenas convicto de que tudo se resolveria, como sempre, sem problemas. Na eternidade tudo se resolve algum dia, não é mesmo?
§§§§ Como nós sabemos, decepções não combinam com felicidade, portanto os felicidadãos jamais se decepcionavam, tal palavra pra eles não existia. Se algum cidadão comum fosse ter que explicar pra eles o que vem a ser essa palavra, eles entenderiam algo como: “ah, é aquilo que a gente sente quando descobre e aprende algo novo e detestável sobre outra pessoa, não é?” – e riria satisfeita por ser tão esperta de ter aprendido uma palavra intraduzível para o seu dialeto – “por outro lado é muito bom descobrir coisas novas... Assim como agora! E tem também a surpresa que é a ‘decepção’... Bem divertido!” e daria um novo sorriso – se é que o sorriso alguma vez tivesse sido de fato desfeito.
§§§§ Tudo para os felicidadãos era muito divertido. Em Felicitown também não existe coisa como raiva, muito menos derivada de estresse ou qualquer coisa assim. Nesse caso, nem uma explicação de um hipotético forasteiro (coisa que não existia, afinal Felicitown era um mundo sem fronteiras onde todos eram um só povo, eu já disse) seria suficiente para um felicidadão entender. Ele precisaria ver na sua frente um forasteiro hipotético com raiva. E mesmo se visse ele ia rir achando isso muito divertido e inusitado.
§§§§ Se fazia frio e elas detestassem, elas se aqueciam. Do contrário, se contentavam numa boa, como em tudo. Felicidadãos sempre estavam contentes, portanto se contentavam com tudo. Se estivessem com fome era só comer – e, obviamente, em Felicitown nunca faltou nada pra ninguém, afinal tudo era bem perfeito, como eu disse.
§§§§ Agora você poderia me perguntar: como as pessoas poderiam ser diferentes se todas igualmente se divertiam com tudo? Talvez elas não fossem muito diferentes umas das outras, pelo menos não no que se referia ao humor. E se elas tinham opinião diferentes? Bom, elas achavam as coisas – como você pôde ver na cena do crepe – boas ou ruins sim, portanto, elas tinham sim opiniões próprias. Como elas se formavam? Das sensações que tinham, com exceção da dor. Ana podia muito bem não gostar de crepe mole, mas era feliz. E Fernando, seu namorado, podia muito bem gostar da massa bem assim. E por que cargas d’água você acha que eles deveriam brigar por isso? É porque você não é um felicidadão! Felicidadãos, eu já disse, não brigam porque não sentem raiva. Eles simplesmente discordam numa boa e é simples assim. Se algo não dá certo ou falha, eles vão atrás de algo que dê certo ou não falhe. Ou vão atrás mesmo do que dê errado de novo, quem se importa? Eles estariam contentes não importa o que acontecesse. Afinal não tinham porque se preocupar com tempo na eternidade – se é que tão conceito existia. Sempre dava tempo pra tentar de tudo e uma hora é óbvio que tudo chegaria à perfeição – e por isso Felicitown era perfeita: porque era eterna já há uma eternidade.
§§§§ Felicidadãos sabiam muito bem imaginar. É claro que piadas, comédias, no geral. Tragédia ou drama, é óbvio, não existia. Muito menos terror, afinal como um felicidadão teria medo se não se machuca ou morre ou não sente decepção ou raiva quando dá algo errado? Não havia medo, havia excitação pela novidade do que ia acontecer em seguida.
§§§§ Um romance comum felicidadão não ia interessar nenhum cidadão comum, ou pelo menos não ia produzir nestes o efeito que originalmente era pra produzir nos felicidadãos. Uma história não era pra ser feliz ou triste, obviamente, não tinha nenhum tipo de problematização – não no nosso entender da palavra – pro desenrolar da história. Era uma história que entretia e fazia sonhar. O clímax consistia só em fazer os felicidadãos ficarem curiosos, mas não nervosos ou algo parecido.
§§§§ Um típico conto de fadas felicidadã era assim:
§§§§ “Era uma vez uma menina que usava um chapéu muito legal na cor azul e por isso seus amigos a apelidaram de Chapeuzinho Azul. No início, ela não gostou do apelido, mas seus amigos resolveram chamar ela assim mesmo e Chapeuzinho Azul achou muita graça na insistência deles.
“Um dia sua mãe falou: ‘filha, o que você acha de ir visitar sua avó, hoje?’ E a menina respondeu: ‘Boa ideia, vamos lá!’. Mas a mãe da menina explicou que não podia ir com ela, pois não estava muito afim disso naquele momento.
§§§§ “Então a menininha decidiu que ia sozinha, pegou uma cesta e começou a colher flores para a avó no meio do caminho. Enquanto isso surgiu um Gato do Mato muito bacana, mas que a Chapeuzinho Azul não foi muito com a cara. Ele falou: ‘oi, o que você está fazendo aqui?’ e a Chapeuzinho Azul: ‘estou colhendo flores, não ta vendo?’, e riu, e o Gato do Mato respondeu muito contente: ‘Oras, mas essa não é a resposta completa para a minha pergunta... Se bastasse ver pra saber eu não teria perguntado! Então deixa eu especificar: para quem você está fazendo isso e por quê?’, então Chapeuzinho respondeu ao Gato: ‘Estou indo visitar minha avó que fica há alguns quilômetros virando a direita daquela árvore ali e decidi colher umas flores pra ser legal pra minha avó e porque é tão divertido colher flores, não é mesmo?’. E o Gato respondeu: ‘Mas e o que não é divertido?’”
§§§§E era assim que terminava a história. Era muito popular entre os felicidadãos quebra-cabeças, enigmas e esse conto para eles era um dos mais interessantes para esse fim, pois mesmo que eles soubessem que nada não era divertido em Felicitown isso era muito estranho, de alguma forma muito divertida eles percebiam isso.
Era um conto muito debatido entre os filósofos, um deles dizia: “Há coisas mais divertidas de se fazer que outras e assim são os opostos: muito divertido e suficientemente divertido, muito prazeroso e suficientemente prazeroso e assim por diante”. Também tinha outro filósofo que dizia achar o contrário e dizia: “Todas as coisas são em-si bastante divertidas”. E no fim os felicidadãos ora citavam um, ora citavam o outro até que um terceiro filósofo disse mais ou menos isso: “Tanto faz”. E essa foi a resposta que eles acharam a que resumia tudo muito bem.

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