Adorava andar por entre as árvores, como num filme, como num livro, como se sua vida assim ganhasse algum significado, uma trama, um enredo... Mas não se enganava a esse ponto. Não, não se deixava enganar. Não era agora que sua vida teria enredo, apenas o cenário. Era o cenário, sem personagens principais, apenas a personagem secundária, ela, caminhando. Personagem secundária não porque não tivesse controle algum de sua vida, isso tinha. Tinha? Alguma liberdade havia, podia escolher, podia mandar em si mesma, podia não obedecer. Podia ir andar entre as árvores... não sem enfrentar algum medo antes, algumas dificuldades. O medo de ir caminhar sozinha. Não era nenhum medo concreto, de ser assaltada, estuprada, assassinada, de chover e não ter sombrinha. Não, era um medo que ela não sabia explicar, era o medo de não conseguir, de falhar, de ir muito longe, sozinha, sem ninguém para amparar. Por isso às vezes levava muito tempo se arrumando antes de sair, construindo uma máscara de maquiagem, uma armadura de roupas bonitas, um escudo frágil de futilidade pelo qual ninguém trespassaria com uma espada aguda de escárnio, de desprezo. Mas era frágil, ela sabia. Era um escudo que não abrangia todas as possibilidades, opiniões... Repetia para si mesma, sempre: é bom ter opiniões próprias. Mas na realidade, na prática, tinha medo das opiniões que os outros pudessem ter sobre ela. Era covarde. Tinha necessidade de opiniões fortes, mas sem aceitar que os outros as tivessem, não se conflitassem. Era o medo do conflito. Era um medo bobo. Era um medo horrível, feio, pequeno. Como aqueles desenhos de bactérias com olhos, bocas, pernas e braços humanos. Uma coisa feia e vívida. Talvez toda a maquiagem, toda a armadura fosse apenas para esconder esse defeito horrível, como uma ferida, uma mancha, uma deformação. Uma deformação. E todas essas tentativas acentuavam a deformação. Uma armadilha construída dentro de outra armadilha. Ela estava cercada, por isso aquela sensação de sufoco. Estava acuada por si mesma, não pelos outros. Mas o medo era dos outros.
Por que secundária? Por isso. Porque todas as personagens secundárias são medíocres, incompletas. Personagens principais são profundas, com desenvolvimento, são como uma mansão com muitos, muitos corredores, muitos quartos, quartos repletos de coisas. Ela parecia só aquilo, o pontinho de sujeira que não sai, não importa o quanto se esfrega, da casa de uma dona maníaca por limpeza. E talvez houvesse corredores e houvesse quartos, mas ela não conseguia ver, apenas obcecada com aquela sujeira horrível, que não sai, culpand0-se pela incapacidade, imperícia, por não saber limpar... Ela devia saber, se era maníaca por limpeza, limpar qualquer coisa. Mas não sabia, e por isso era ruim na única habilidade que precisava ter. Era uma vergonha. Uma casa abandonada por culpa de uma sujeirinha que não sai. E o pó no resto dos cômodos se acumulando.
Olhou para as árvores, tentou se concentrar nelas para sair um pouco daquela constante aflição que não se ia. Mas as árvores todas refletiam seu pontinho sujo – ela nunca, nunca conseguiria se livrar daquela ideia, e por isso o pontinho sujo ia crescendo, crescendo aos seus olhos, como se desse um zoom, como se estivesse examinando num microscópio potente. As árvores eram só uma representação da sua falha. Algumas árvores dão flores, algumas árvores dão frutos. Uma grande quantidade parece só dar folhas, essa era ela. Não era bela, não produzia, era apenas uma árvore infértil (fértil, de alguma forma sim, mas não bela, não grandiosa... não, não é verdade isso, ela gostava de árvores sem frutos ou flores, mas ela não podia gostar dela mesma). Era apenas uma árvore sem nada demais. Mas não era, como no caso das árvores, por culpa genética, mas por culpa sua, por culpa do defeito que ela criara e se apegara e não conseguia, não conseguia limpar.
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