I. Antônio
Então Margarida vai casar... de novo. Descubro pela minha filha. Agora estou aqui, subindo sozinho esta rua – está um sol! o chão rebrilha – e a coisa de fato começa a me preocupar, como um remédio que demora a desmanchar no estômago. Margarida vai se casar de branco. Um vestido de verdade, uma festa bem melhor do que a que pudemos dar na nossa época. O vestido é de vingança, é de propósito. Vai dizer para todos que é bem melhor agora, que nunca que vai voltar pra mim. Embora eu tenha terminado tudo, agora a coisa parece transformada, que foi tudo ideia dela – fazer eu terminar pra casar de novo –: casar e dizer que não teve culpa, e que não vai mais voltar pra mim porque eu é que não quero. E agora está tudo mesmo terminado, ela vai casar de novo.
Entro em casa suado, deixo a caixa de ferramentas em cima da cômoda, ligo o rádio, vou tomar banho. Toca uma música especial para mim, é como se eu tivesse escolhido, de propósito, o cantor está cantando um amor perdido. O cantor está cantando que Margarida me deixou por outro, pra poder casar de branco. É tudo tão rimado e tão bonito que nem meu próprio sentimento, nem meu próprio caso parecem mais sinceros que a música do rádio.
II. Mariana
Vou até o armário olhar o vestido pendurado na porta. É tão escuro aqui, e com cheiro de madeira... Olho o cabide e o plástico pendurados, mas estão vazios, o vestido não está lá. Eu ia olhar o vestido para descobrir a data do dia que mamãe vai se casar... Fui enganada! Essa era a única forma de descobrir se tenho que me arrumar hoje para a festa, ou se é amanhã, ou no fim do mês. Fico tão assustada pela ideia de eu acabar perdendo tudo, o casamento da minha própria mãe, porque não sei a data... Que humilhante! Vão dizer rindo: a Mariana é mesmo esquecida. Sou tão esquecida que esqueci o casamento da minha própria mãe e eles estão completamente certos, um acontecimento dessa magnitude vai comprovar tudo!
Mas paro e penso: se o vestido não está aqui, será que não é porque mamãe já está vestida? Ou então o vestido está sujo e foi lavar na lavanderia, pra ficar branquinho para o casamento, e isso significa que já está próximo, que pode ser hoje à noite ou amanhã? Eu me apego a essa última possibilidade, porque se fosse agora mamãe já teria vindo me buscar... Mas só o vestido podia dizer exatamente o dia e a hora, com a capacidade e a certeza que só as coisas que não falam têm. Olhar pra ele ia me fazer entender em que lugar do dia e do mês eu ia ter que estar pra não me enganar, porque as datas, os hojes, ontens e amanhãs que as pessoas dizem nunca ficam muito claros para mim. Eles falam: daqui a uma semana, mas eu não sei como esperar uma semana, não sei nem mesmo se daqui a uma semana irei lembrar – sou tão esquecida! E hoje é hoje hoje, ontem era amanhã, amanhã amanhã será hoje e essa bagunça toda, e eu nem sei dizer que dia é hoje, porque se soubesse eu sei que o casamento tem um 8 no dia, ou é 8 ou é 28. Mas aí também não dá para acertar...
III. A autora
Ainda estou ouvindo a canção do Antônio, uma canção antiga de amor, daqueles nomes famosos que os velhos costumam gostar. E eu podia acompanhar a música cantando, um poema da minha própria cabeça, que tinha rima e eu sabia a letra. Aos poucos reparo que a voz ritmada do cantor nada mais é que o som de um martelo batendo na parede, e enquanto as coisas vão clareando na minha cabeça fico admirada que, depois de tanta busca consciente por uma história fictícia, uma se fez sozinha enquanto eu dormia. A descoberta ainda não me decepciona, fico feliz pelo meu subconsciente – ou seja lá o que for – que é mais criativo do que eu quando estou acordada – e que criou até uma música rimada. Resta saber se o subconsciente também sou eu, ou se eu estou roubando os direitos autorais de uma outra pessoa que habita meu corpo e divide um quarto comigo no meu cérebro... Se fazer um conto baseado num sonho não é trapaça.
Mas aos poucos a alegria vai se transformando quando eu olho o quarto e quando eu vejo do lado de mim, na cama, Os irmãos Karamazov (dizendo assim, parece até algo pervertido), que eu li o comecinho pouco antes de dormir. Aí eu lembro que lá no início da história tinha algo parecido com o que eu estava sonhando, e a decepção toma conta: eu não estou plagiando eu mesma, eu tive que dormir pra plagiar o próprio Dostoievski, porque nem acordada eu sou capaz de fazer uma coisa dessas – seja por incompetência ou por senso ético.
E lá se vai meu único momento de satisfação comigo mesma por água abaixo, como se eu tivesse acordado com um balde de água fria... Continuo olhando para o teto e vejo a luminária em forma de balão balançando devagarzinho, como um barquinho que velejasse no céu, assoprado por uma brisa bem suave. Nada mais se move no quarto. É como se algo mágico soprasse o balão. É como se eu mesma quisesse acreditar em algo mágico. E concluo que, se eu visse mais mágica no mundo em vez de linhas claras, críticas e certas, eu não precisaria de um sonho pra criar.
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