Decidi escrever sobre a única personagem que poderia criar com honestidade e verossimilhança: eu mesma. Há algum tempo – há muito tempo, na verdade – eu venho me impondo essa tarefa de escrever alguma coisa, e me reprimindo pelo fato de só conseguir escrever sobre essa mesma personagem. Por algum tempo me recriminei – como se ainda não me recriminasse... –, mas o fato que eu estou tendo que encarar é que eu sou mesmo egocêntrica. Desde pequena (mas isso a psicologia já explica) eu só conseguia pensar no mundo que me rodeava pelo que ele podia me afetar. Também não sei se é possível pensar num mundo que não nos afete, ou em pessoas que não nos afete em nada, mas o problema do meu caso é o grau, obviamente. Dizem que eu sempre culpo minha depressão pelas minhas falhas e eu não vou fazer diferente agora: eu faço isso porque sou uma pessoa deprimida. Em outras palavras, quando você está com uma dor de cabeça muito forte fica difícil prestar atenção em outra coisa que não seja essa dor, e tudo parece latejar com você. É assim comigo.
Mas não basta explicar que meu egocentrismo não é completamente minha falta – se é que algo pode ser completamente nossa falta. Eu não posso aceitar que um possível leitor feche o livro na minha cara porque – “por qual motivo eu deveria prestar atenção em alguém que não presta atenção além de em si mesma?”... E essa seria uma razão muito aceitável. E ao aceitar que o leitor feche o livro na minha cara, eu teria que aceitar que as pessoas na minha vida me fechassem na minha cara, mas, por favor, não... O egocentrismo pode ter algo de bom. Por ele pude me conhecer. Não ao máximo, é verdade, porque quem poderia tirar nota máxima em autoconhecimento? Todos sabem que o ser é denso e subjetivo demais. E eu não sou tão convencida assim. A questão é que eu me aprofundei em mim mesma, e tentei conhecer os outros, juro, mas falhei. Por isso resolvi escrever sobre mim. Não para celebrar meu próprio egocentrismo, mas para tentar repassar o caso e, quem sabe, deixar de lado finalmente a obsessão. Isso a psicologia também explica. Mas, é claro, pra quem está de fora tudo isso é muito fácil. É fácil dizer: isso não está certo. Eu concordo com você, admitir assim tão claramente que estou escrevendo por terapia e catarse, sem a menor gota de cinismo, pode soar não honesto, mas ingênuo, e constrangedor. Sou muito clara, muito franca. Você vai pensar que qualquer um tiraria 10 em autoconhecimento se fosse eu, porque sou simples, e só eu não tiro 10 por ingenuidade. Mas é bem assim mesmo que a gente costuma julgar os outros: com simplismo. É muito fácil se colocar na pele dos outros! –Aqui você pode dizer: se é tão fácil, porque você admitiu ali em cima que não consegue fazer? Por isso mesmo: porque eu não acredito de fato que seja fácil. A gente acredita poder ler as pessoas, mas tantos pensamentos e sentimentos secretos que nunca virão à tona... Nós estamos do lado de fora, e a única cópia de chave que temos para o outro nos leva a entrar em quem? Não na pessoa, mas em nós mesmos, num simulacro que não corresponde a ele, mas sempre a nós mesmos.
Ainda há outra crítica possível: os verdadeiros autores conseguem ao menos imaginar uma diversidade de ideias, sensações e sentimentos. Num simulacro, é verdade, mas um simulacro bem feito, porque eles mesmos se dividem em mundos possíveis. E eu então sou rasa e reta? Sem bifurcações? Acho que não (apesar de que, é verdade, eu sou muito centrada em certos detalhes a ponto de a maior parte tempo ignorar as bifurcações), eu não tenho é a característica necessária para ser uma escritora de fato. A coisa é que eu tenho uma noção de dever com a verdade que não corresponde a ideia da ficção – e que precisa ser curada. Eu preciso parar de temer a mentira como se a mentira fosse sempre o oposto da verdade (e, acima de tudo, facilmente desvendável). Eu ainda não sou escritora porque não sei mentir.
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