sábado, 14 de dezembro de 2013

As (super) mulheres

   No meu imaginário, mulheres feministas não eram mulheres como eu, quer dizer, não eram tão inseguras, não se preocupavam tanto com a opinião dos outros sobre sua aparência, eram mais fortes, eram sexualmente livres, eram empoderadas, enfim, elas eram espécie de super mulheres com poderes especiais que lhes deixava imune ao patriarcado (talvez por isso muitas de nós demoremos tanto a nos identificar com o feminismo).
   Ontem eu me dei conta do quanto essa imagem – parte das muitas distorções que fazem sobre o feminismo – estava errada. Ontem eu li algumas dessas mulheres feministas contando como nunca tinham atingido um orgasmo, e que perguntavam para outras de nós como era. Elas não eram assexuais, mas nunca tinham vivenciado um orgasmo. Elas não sabiam como se masturbar, ou nunca tinham feito. Estranho, eu pensei, como assim feministas que nunca tiveram orgasmos? E a liberdade sexual e todo o resto?
   Mas antes mesmo disso eu já tinha conhecido várias com distúrbios alimentares, com dismorfismo corpóreo, inseguras sobre a própria aparência. Muitas de nós vivenciamos violência sexual, assédio, abusos, violência doméstica...
   Até que eu me dei conta do quão ingênuo era esse meu imaginário que esperava que mulheres feministas fossem seres à parte. E talvez aqui resida o erro de tanta gente (em sua maioria homens) de esperar tanto certas atitudes das feministas como paciência, cortesia, racionalidade (por oposição a emoção), entre outras coisas.
   Uma discussão, protagonizada por homens, dizia que compreendia a vítima se rebelar contra uma situação de violência de forma vingativa, mas não que feministas reagissem dessa forma.
   Quando li isso talvez a imagem que eu tinha já estivesse desmoronando porque dentro de mim uma voz gritou: mas nós somos as vítimas.
   E ontem, e hoje, esse é um ponto que ficou claro pra mim definitivamente.
   Pessoas com muitos privilégios não conseguem entender muito bem a diferença entre simpatia e empatia. A nossa empatia não se dá por compreensão, porque “nos colocamos no lugar” de forma abstrata. Muitas de nós estamos naquele lugar. Quando a gente se posiciona diante de uma situação de violência, muitas de nós estamos lutando por nós mesmas. E quando digo nós, não é no sentido de sororidade, de compreensão apenas, estou falando de um eu. Muitas das feministas não estão lutando por pessoas oprimidas, elas estão lutando por suas vidas. Elas estão, muitas vezes, tentando reescrever seu próprio passado, para que eles não se repitam nunca mais. Não são cicatrizes que fazem elas compreenderem certas situações, são feridas abertas que elas tentam fechar lutando para que uma violência deixe de existir. São mulheres que reagem contra os padrões de beleza, não porque sabem que maravilha que é ter a segurança de serem elas mesmas, sem se importarem com a opinião alheia, e por isso querem espalhar a boa nova, elas reagem contra o padrão de beleza que está tornando a vida delas mesmas um inferno. Da Beyoncé à mulher obesa à mulher butch, todas elas sofrem com isso, seja para se enquadrarem, seja por ou para não fazer parte. Elas lutam contra a violência sexual porque não querem ver aquele trauma se repetir de novo, elas lutam pela liberdade sexual que lhes foi reprimida, negada, suprimida.
   Não há sangue frio, racionalidade onde existe tanta dor. Não tem como se manter plácida quando conhecemos tantas histórias iguais as nossas. Nossa dor está multiplicada em cada uma de nós que passa pelo mesmo. Os espaços exclusivos são para dividir esta dor entre nós de forma segura. E mesmo isso temos que justificar e explicar o tempo todo, enquanto homens saem do navio para afundar nossos botes. Nos reprimem o gozo, nos reprimem o grito, nos reprimem a lágrimas. Somos vagabundas se gozamos, somos “vitimistas” se choramos, a raiva é fora de hora. Nenhuma expressão é admitida e somos exageradas se dissermos que com isso nos querem reduzir a bonecas.
   É por isso tudo que não gosto muito de homens no feminismo. Talvez nunca tivesse conhecido essas histórias, nunca tivesse sabido o quanto é generalizada a minha dor, se não tivesse participado desses grupos onde mulheres, como eu, se sentiam à vontade para falar sem serem censuradas, sem se sentirem envergonhadas. Talvez eu não ficasse sabendo que todas nós, das que têm orgasmos às que nunca tiveram, somos super-mulheres por conseguir resistir.

Um comentário:

Anônimo disse...

Marcely, acompanho você há uns 6 anos mais ou menos. Descobri o Accela por acaso e gostei tanto que devo ter lido quase todos os posts, haha. Aí vim parar aqui, e... a mesma coisa. Enfim, me sinto próxima de você e é incrível ver a sua transformação, ao mesmo tempo em que mantém a inteligência entre outras coisas habituais. Você vem se tornando uma pessoa ainda mais incrível com o tempo, e cada vez gosto mais do que você escreve. Consigo me identificar e apreciar os posts íntimos e também com os sociais, políticos. Te admiro bastante. E você nem sabe.

Enfim, só queria deixar esse recado já que NUNCA o fiz, mesmo lendo você há tanto tempo. E pedir que você escreva mais, pois, ultimamente, tem publicado pouca coisa, haha.

Beijos! E parabéns.